O sistema processual brasileiro, impulsionado pela chegada do “novo” código de processo civil, vigente desde o primeiro semestre de 2016, vem buscando caminhos de efetivação das regras destinadas a uniformização de decisões judiciais, com a justificativa da urgente necessidade de se preservar a segurança jurídica e o tratamento isonômico entre aqueles que buscam a tutela jurisdicional envolvendo uma mesma questão de direito.
No entanto, é preciso considerar que o modelo de vinculação estabelecido nas regras destinadas a este fim, especialmente aquela disposta no artigo 985, I e II do CPC/15, impõe uma necessária interpretação sistemática de sua determinação, sob pena se ter como resultado, exatamente o oposto àquilo que se pretende combater, a insegurança jurídica gerada a partir de tratamento jurídico distinto sobre uma mesma questão de direito.
Referido artigo, disciplinando o limite territorial de eficácia vinculativa do acórdão que tiver enfrentado o incidente de resolução de demandas repetitivas, estabelece que a tese jurídica firmada por referida decisão, deverá ser aplicada, tanto em relação aos processos individuais quanto aos coletivos, que versarem sobre idêntica questão de direito, desde que tramitem em área de jurisdição do respectivo tribunal, estadual ou regional, incluindo aqueles que tramitam nos juizados especiais. (frisamos)
É sabido que os órgãos jurisdicionais possuem limite territorial de atuação, decorrente de regras de organização judiciária e do modelo jurisdicional adotado em nosso sistema processual. Contudo, a problemática que surge frente ao debate aqui posto, não diz respeito propriamente ao limite territorial de atuação de tal ou qual órgão jurisdicional, mas, sobre o efeito vinculativo da tese jurídica firmada por determinado órgão jurisdicional, portanto, a questão não possui natureza processual, mas hermenêutica.
Partindo da premissa de que o direito e assim a questão de direito, é una em todo território nacional, ainda que a atuação jurisdicional do órgão prolator esteja limitado a um dado território, o produto resultante da interpretação lançada sobre determinada questão de direitonão pode estar sujeito a esta limitação, sobretudo quando possuir carga vinculativa, devendo, inexoravelmente, recair sobre todas as demandas com idêntica questão de direito, independente de sua localização no espaço geográfico da jurisdição nacional. Em outras palavras, o limite territorial de competência do órgão prolator da decisão em procedimento de uniformização pela via do IRDR configura-se como de natureza essencialmente processual, não podendo ser confundido com o efeito vinculativo da tese jurídica, de natureza interpretativa[1], estabelecida sobre questão de direito, que, por ser una, não pode se restringir aqueles limites territoriais.
O presente trabalho pretende se debruçar sobre esta problemática, por certo, não com o intuito de ser a última palavra, mas, tão só colaborar para o debate, sempre necessário ao aprimoramento da atuação jurisdicional.
- Da natureza unitária decorrente do processo interpretativo das questões de direito.
Diferentemente do que se verifica com a questão de fato, que recebe contornos distintos quando considerados os sujeitos e a própria situação fática que a ensejou, assumindo, portanto, características de subjetividade, a questão de direito, de outro modo, possui contornos objetivos, considerados a partir de seu aspecto de unitariedade e imperatividade[2], independentemente de sua fonte, seja ela norma escrita, jurisprudência ou precedentes.
É certo que o direito, como mecanismo de regulação social, é mutável, porque sujeito às variações do tempo, sofrendo influências de diversas ordens, política, econômica, religiosa, moral, antropológica, etc.
Nesse ponto, como anota doutrina de José de Oliveira Ascensão[3] “o elemento dinamizador da ordem jurídica é o facto.” Segundo este professor da Universidade de Lisboa, os fatos possuem a capacidade de modificar a situação existente, passando a receber conotação jurídica no exato momento em que traz efeitos previstos no sistema jurídico.
No entanto, considerados os fatores de interferência sobre a norma de direito e fixados os parâmetros de sua leitura, não se pode permitir que duas situações jurídicas que nela se enquadrem, recebam tratamento jurídico distinto a depender dos limites territoriais que se encontram, sob pena de se frustrar o respeito àquelas garantias constitucionais que se pretende preservar com os institutos destinados à uniformização da jurisprudência, especialmente da segurança jurídica e da igualdade processual.
A característica da unitariedade, imperatividade e previsibilidade do direito, permite configura-lo como espécie de interesse difuso, portanto, de titularidade indefinida e indefinível.
Como bem pondera doutrina de Rodolfo de Camargo Mancuso[4] a norma jurídica, considerada sua característica de generalidade e abstração, especialmente nos casos de feições de common law, encerram a uma dinâmica indutiva, pelo fato de transitarem do particular para o geral, visto que é do enfrentamento de casos particulares que decorre a ratio decidendi, “o biding precedente”, que irá formar a solução para os casos futuros e presentes que contém aquela mesma questão de direito.
Esta característica de generalidade e abstração, como observa o autor, igualmente recai sobre o modelo de civil law ainda que se considere que sua origem possua uma fonte dedutiva, partindo do geral, regra jurídica, fruto de um processo legislativo, para o particular.
De modo que, a opção pelo modelo de precedentes como forma de alinhamento das decisões judiciais, visando maior segurança jurídica a partir de uma maior previsibilidade sobre a aplicação do direito, impõe a aceitação de que o Direito, como norma de regulação positivada, tanto pode surgir como fruto de um processo legislativo, como também pela via da uniformização de jurisprudência, sob pena do modelo de precedente não assumir qualquer sentido lógico.
Como assevera doutrina de Juan Ruiz Manero[5] “no hay, a este respecto, una diferencia substancial entre legislação e jurisdicción.”
É certo e indubitável, como adverte este autor, que de um processo interpretativo poderá decorrer mais de uma decisão correta. No entanto, é preciso considerar que, uma vez unificada a interpretação dessa regra jurídica, o magistrado perde o caráter discricionário de sua atuação, repita-se, não sendo esta uma consequência de natureza técnica-processual, mas da natureza do próprio objetivo a ser atingido.
Conclui-se neste ponto, que a liberdade criativa do direito pelo juiz, encontra limite no próprio sistema, posto pela opção por um modelo de uniformização, ou seja, tem-se aqui uma questão de caráter não jurídico, mas político, no sentido de que resulta de uma escolha legislativa em se adotar um modelo de uniformização, onde a previsibilidade é eleita como valor.
Por esta via, verificando o magistrado que a situação fáctica que lhe foi apresentada, alinha-se com a questão de direito fruto de procedimento de uniformização, não é de sua opção a aplicação, mas dever e esta vinculação não pode permanecer adstrita ao limite territorial de competência do órgão responsável pelo julgamento da decisão paradigma.
Retomando os ensinamentos de Rodolfo Camargo Marcuso[6] se percebe que, apesar de admissível e até indispensável o debate sobre a adequada interpretação de determinada norma jurídica, ou situação jurídica concreta, … “uma vez chegada a quaestio iuris aos tribunais, deflagra-se o dever de uniformizar o entendimento assentado a respeito, seja para atendimento à desejável previsibilidade das decisões, seja para o tratamento isonômico aos jurisdicionados.”
Nesse particular, imperioso consignar que a decisão proferida em qualquer dos procedimentos de uniformização de jurisprudência, a despeito de estar-se tratando aqui especialmente do IRDR, possui indiscutível força vinculativa, assumindo caráter de precedente, para decisões presentes e futuras envolvendo fatos que tenham a mesma questão de direito como fundamento.
Como pontifica Michele Taruffo,[7] entre precedente e jurisprudência há uma distinção, tanto quantitativa quanto qualitativa.
Observa o autor que o precedente, decorre de uma decisão, relativa a um caso particular, sendo, por esta via, de todo modo fácil identifica-la.
Destaca-se o fato de que, o precedente não decorre do julgamento da primeira demanda, estendendo-se de modo automático sobre demandas futuras, esse inclusive, o equivoco que tem marcado alguns debates na doutrina nacional, mas, como esclarece esse processualista italiano, “é o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o precedente e desta forma – por assim dizer – “cria” o precedente.”
Frisa Taruffo o caráter universal do precedente, devendo ser utilizado como paradigma para as decisões sobre os casos futuros, exatamente em decorrência da identidade ou da analogia entre os fatos constantes no primeiro caso (precedente) e nos que a este sucederem.
Na visão desse processualista italiano, essa inclusive, a essencial distância entre jurisprudência e precedente. Aquela decorre de múltiplos casos, muitas vezes com essência fática-jurídica distinta, exatamente por isso geradora de decisões diversas, ao passo que o precedente impõe uma perfeita vinculação entre o caso a ser julgado e a decisão paradigma.
É falsa portanto, a alegação de que o modelo de precedente engessa o magistrado; em verdade, como já anotado nas linhas acima, possui o juiz pleno poder interpretativo sobre a questão de fato, é dele a função de verificar o alinhamento desta situação de fato com a questão de direito previamente existente, ficando vinculado apenas se concluir positivamente por este alinhamento.
2- O procedimento estabelecido para o IRDR e a configuração de sua decisão como precedente.
No item anterior foi possível verificar que o precedente, diversamente do que se possa entender, possui um poder vinculativo às avessas, de modo que não se vincula a interpretação judicial de cima para baixo, mas o exato contrário, sendo a vinculação o resultado do processo interpretativo do magistrado que, ao analisar o perfeito alinhamento entre a questão de fato existente em dado caso concreto com a questão de direito decidida em caso anterior a adota como fundamento. É só neste momento que o magistrado perde sua capacidade discricionária de “optar” por um ou outro resultado possível de interpretação, ficando vinculado, nos termos do art. 927, III e 928, I do CPC.
Quanto ao procedimento adotado pelo CPC/15, ao regular o instituto do IRDR em seu art. 976 e ss, o legislador estabeleceu requisitos específicos, quais sejam:
a) efetiva repetição de demandas contendo controvérsia sobre uma mesma questão de direito;
b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
É com fundamento nesse raciocínio que se sustenta no presente escrito que, a incidência obrigatória da tese firmada em procedimento de IRDR não conflita com o princípio da reserva legal ou mesmo da legalidade estrita.
Não obstante firmada a tese sobre questão de direito, a função de verificar o alinhamento do caso concreto com a tese paradigma continua pertencendo ao magistrado. Repita-se, por relevante, é só a partir da conclusão por este alinhamento que sua discricionariedade deixa de existir, ficando ele vinculado, o que não é diferente em relação ao poder vinculativo de qualquer outra norma jurídica.
Há portanto, um limite ainda que tênue entre discricionariedade interpretativa do magistrado, que lhe permite avaliar o enquadramento da situação fática ao direito estabelecido, independentemente de sua fonte e a arbitrariedade. Nesta, o magistrado faz prevalecer sua convicção subjetiva, ideológica e pessoal, recusando-se ao alinhamento necessário e já estabelecido para aquela questão de fato.[8]
A questão que merece ser posta é que no procedimento do IRDR não se tem a fase de alinhamento da questão concreta de fato à tese de direito tão aberta quanto nos casos de normas jurídicas gerais.
A razão é relativamente clara nos parece. Enquanto as normas jurídicas gerais, resultado de processo legislativo, têm por fim regular situações jurídicas hipotéticas, a tese firmada em procedimento de IRDR, nasce a partir de situação jurídica concreta, repetitiva, vinculando as decisões futuras que tenham plena relação com aquele paradigma.
No procedimento do IRDR, parte-se da premissa de que todas as demandas que envolvam aquela tese de direito posta, são idênticas, o que não pode ser lido como conclusão absoluta.
É nesse sentido que se deve ter em conta que a tese de direito resultante do procedimento de IRDR assume caráter de precedente, portanto, de caráter vinculativo, e não de jurisprudência, com mera função de orientação.
É preciso ponderar o fato de que a resistência, sobretudo, mas não de modo exclusivo, da magistratura, em absorver este novo modelo de precedente, em regra, resulta de inadequada compreensão sobre o que de fato representa este poder vinculativo, além, do superado entendimento da atuação da magistratura como expressão de Poder, quando em verdade, deve ser tida como Função, de modo que, não se deve mais admitir a tese de que o efeito vinculativo de precedentes retira do magistrado sua autonomia interpretativa sobre a demanda concreta.
Segundo nos ensina a doutrina de Daniel Mitidiero[9] há que se considerar também a cultura, igualmente já defasada, de vinculação do direito brasileiro à uma tradição romano-canônica, colocando-se a legislação como fonte primeira do direito, figurando o magistrado como alguém que possui função meramente declarativa do direito posto.
A superação desse modelo, segundo Mitidiero, é medida que se impõe, devendo a relação entre legislação e função jurisdicional ser vista de modo dinâmico e cooperativo. Segundo esse autor, deve-se levar em consideração “a interpretação como uma atividade adscritiva de um sentido possível empreendida por uma jurisdição reconstrutiva da ordem jurídica.”[10]
Por outro lado, igualmente necessário trazer à luz, cenário infelizmente comum na prática jurídica, onde julgadores, valendo-se do argumento de presunção de identidade entre os casos relacionados a uma determinada tese firmada, deixam de considerar as peculiaridades de eventuais situações concretas.
Esse modo torto de utilização dos precedentes,[11] dá ensejo a nefasta prática de produção de decisões em massa, com fundamentos realizados na base do ctrl C, ctrl V, como se não restasse ao julgador outra coisa a fazer senão repetir a decisão espelhada.
No entanto, este uso indevido do modelo de precedente, não pode ser confundido com a inadequação do instituto, menos ainda permite ser tratado como mera orientação jurisprudencial, antes, impõe um necessário aprimoramento do modo de sua aplicação.
Como anota a sempre lúcida lição de Rodolfo de Camargo Mancuso,
Por certo, essa nova ordem em nada atrita a separação entre os Poderes, podendo dizer-se superada a clássica concepção monopolística que outrora, respaldava a dicotomia entre eles, substituída por uma vera integração de atividades, resultando, de um lado, uma nomogênese difusa – tantos são os órgãos e instâncias credenciados a normatizar – e, de outro lado, uma jurisdição compartilhada, tantos são os órgãos e instâncias autorizados a resolver as controvérsias.[12]
3- A inadequação da limitação dos efeitos da tese firmada em procedimento de IRDR aos limites territoriais de competência do órgão prolator
Ponto de relevância destacada, consta da disposição dos parágrafos 3º e 4º do art. 982 do CPC/15, estabelecendo que, exatamente com fins a tutela da segurança jurídica, qualquer dos legitimados à provocação do IRDR constantes do art. 977, incisos II[13] e III,[14] poderá requerer junto ao tribunal competente para conhecer do recurso especial e/ou extraordinário a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já instaurado. Este poder também pertence a parte de processo distinto daquele onde se provocou o IRDR, ainda que sua demanda esteja tramitando em competência territorial distinta.
Apesar do referido artigo 982, § 3º e § 4º não indicar o magistrado como legitimado a pleitear a suspensão dos processos que contenham aquela mesma questão de direito, deve-se ter esta previsão como resultado de interpretação sistemática.
O reforço a esta inadequada via interpretativa pode decorrer da leitura isolada do disposto no art. 985, I e II do CPC, ao estabelecer que: julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos individuais ou coletivos, presentes e futuros, que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal.
Vale ressaltar neste ponto, como bem adverte Rodolfo de Camargo Mancuso[15] que, diversamente do que ocorre no procedimento de julgamento do REsp e RE repetitivos, no caso do IRDR, a afetação se restringe a tese de direito e não ao processo em que a tese esteja inserida. Em outras palavras, tem-se que no procedimento do IRDR o órgão competente se restringirá a decidir aquela tese e não o mérito do processo, ficando este a cargo do juízo competente, ainda que a redação do parágrafo único do art. 978 dê a entender de outro modo.
Como bem anota este processualista da USP, o procedimento do IRDR não instaura uma assunção de competência, de maneira que não permite ao órgão jurisdicional competente para julgar o IRDR avocar o processo de origem, até porque, como pondera este mesmo autor, é bem provável que o processo de origem não esteja “maduro” para ter seu mérito enfrentado, além do inafastável cumprimento do contraditório que deverá recair no caso de incidência da tese de direito firmada no IRDR e o caso concreto.
Conclui ainda Mancuso, assim como anotado ao longo do presente escrito, que a decisão proferida em sede de IRDR se configura como precedente, de modo que ainda que possua natureza vinculativa, não retira a liberdade do magistrado de concluir pela distância entre a tese de direito firmada como paradigma e a situação de fato encontrada no caso concreto. Exatamente como anotado linhas atrás, a vinculação decorrente dos precedentes se configura de modo inverso, sendo em verdade, produto de processo interpretativo do magistrado ao ponderar sobre o alinhamento de uma e outra questão, não sendo, portanto, automática a incidência do resultado do julgamento do IRDR.
Considerando que a tese firmada pelo procedimento do IRDR possui natureza de precedente, de modo a assumir natureza de fonte de direito a recair sobre as situações de fato que nela se enquadrem, não se pode reconhecer como legítima a restrição territorial estabelecida para a incidência dessa tese de direito.
Como dito, o caráter unitário, imperativo/vinculativo dos precedentes, somado ao escopo dos mecanismos de uniformização de interpretação das regras de direito colidem, de modo frontal, com o resultado que se teria se aplicada a regra do artigo 985 de modo literal.
Confunde-se, por mais uma vez, limites de competência com limites de jurisdição, assim como se deu com a interpretação da disposição contida no artigo 16 da Lei 7.347/85 ao regular os limites subjetivos da coisa julgada em ação civil pública.
A título de exemplo, tem-se o Estado de São Paulo, onde existem dois Tribunais Regionais do Trabalho, 2º e 5º região. O TRT/2º, competente para as demandas da capital e litoral e o TRT/5º competente para as demandas do interior do Estado. Aplicado de modo literal a disposição contida no artigo 985 do CPC, é possível que se tenha um precedente com incidência vinculativa na capital e outro no interior. De modo ainda mais concreto, seria possível cidades com distância inferior a 50 km aplicando entendimento jurisprudencial distinto.
Só por este simples exemplo, é possível concluir o quão irracional seriam os efeitos decorrentes desse modelo de interpretação restritiva e literal da disposição contida no referido artigo.
Por outro lado, como poderia o órgão responsável pelo julgamento do IRDR determinar a suspensão dos processos a outro juízo com competência territorial distinta?
Há inclusive, quem sustente que a disposição contida no artigo 985, I seria inconstitucional por vincular o juizado especial a decisão de colegiado de tribunal estadual ou regional, sendo que aquele não está vinculado a competência deste.
Com a devida venia, não nos parece ser este o melhor entendimento.
Como já ponderado aqui, o precedente resultante da decisão unificadora de tese de direito em procedimento de IRDR, fonte de direito que é, caracteriza-se como una, imperativa e vinculativa, de modo que, não só prevalece como vincula independentemente dos limites territoriais de competência.
Ainda que se considere que o poder de determinar a suspensão das demandas envolvendo tese de direito idêntica decorre das regras de competência, o resultado do julgamento do IRDR não.
Como ponderado ao longo do presente escrito, a vinculação do precedente não pode ser tratada como de natureza processual, mas hermenêutica, decorrente de processo de unificação de regras de direito, com fins a preservação de tratamento isonômico entre os sujeitos que se insiram em situações de direito idênticas.
4- Conclusão
O procedimento de uniformização de jurisprudência inserido no CPC/15 e denominado de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, reforça a busca por um sistema de processo que consiga estabelecer algum grau de previsibilidade de suas decisões com claros e necessários fins à tutela da isonomia e da segurança jurídica.
Diversamente do que se possa imaginar, o precedente não resulta da vinculação do juiz pela norma, de cima para baixo, mas o exato contrário, resulta da interpretação acolhida pelo juiz, entendendo que aquela tese de direito firmada em procedimento de IRDR, por exemplo, como sendo a mais adequada para determinada questão de fato.
Por isso se disse tratar-se de vinculação inversa, no sentido de que é função do juiz avaliar se a situação fática que está em suas mãos se alinha com a tese de direito firmada em procedimento de IRDR.
Fixada a tese, a partir de efetivo contraditório, perde o juiz a liberdade de escolher uma dentre várias interpretações possíveis e as vezes até justas, de modo que as demandas presentes e futuras que envolvam aquela mesma tese de direito deverão ser julgadas da mesma forma.
Esta conclusão, contudo, só de modo aparente pode indicar restrição a livre intepretação do magistrado, ao contrário, a própria concepção de precedente impõe ao juiz responsável pelo julgamento do mérito da demanda, a plena liberdade de concluir que o caso concreto não se alinha com a tese firmada no procedimento do IRDR, ficando dispensado da aplicação vinculativa do precedente.
Nessa linha, fundamental ter em conta que a disposição contida no artigo 985 do CPC, estabelecendo que a tese firmada em procedimento de IRDR vinculará as demandas presentes e futuras, desde que inseridas nos limites da competência territorial do órgão prolator, exige outro caminho de interpretação que não o literal.
Ora, aplicada tal determinação de modo literal, a consequência será a própria violação da isonomia e da segurança jurídica, além de permitir de modo flagrante a existência de decisões distintas sobre o mesmo ponto de direito, contrariando todo escopo de constituição deste instituto.
Portanto, a leitura do artigo referido só faz algum sentido se analisado de modo cumulado com a redação dos artigos 927, III e 928, I, tudo do CPC.
De modo sistemático, tem-se que instaurado procedimento de IRDR, deve o órgão responsável pelo seu julgamento, informar de modo imediato ao STJ ou STF para que determine a imediata suspensão dos processos que contenham a mesma questão de direito em todo território nacional.
Contudo, nada impede, aliás, no presente escrito, sugere-se como via adequada de interpretação desse modelo de julgamento, que o próprio órgão responsável pelo julgamento do IRDR, de oficio ou a requerimento, informe aos Presidentes de outros tribunais sobre a instituição de tal procedimento, bem como seu objeto, requerendo a suspensão dos processos com tese idêntica em todo território nacional.
Ainda, é preciso ponderar a possibilidade e, a nosso ver, o dever, do juiz responsável pelo julgamento de demanda que contenha aquela tese de direito já firmada em procedimento de IRDR, aplica-la, sob pena de frontal violação dos artigos já citados 927, III e 928, I do CPC.
Não se diga tratar-se de intepretação impossível ou inadequada, com alegação de que tal comportamento violaria regras de competência. Em verdade, o dever do magistrado que irá enfrentar demanda com tese de direito já fixada em procedimento de IRDR de aplicar tal tese, independentemente da competência territorial de um e outro ser a mesma, decorre de regra de interpretação sistemática do modelo de uniformização de jurisprudência, possuindo enquadramento no exercício da própria função jurisdicional, portanto, nada tendo com regras de competência, com todas as venias devidas àqueles que pensam em linha diversa.
Bibliografia
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CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte de direito. Especialmente o item 4.3. São Paulo: RT. 2004;
MANERO, Juan Ruiz. Jurisdiccion y normas. Dos estudios sobre function jurisdiccional y teoría del derecho. Centro de estudios constitucionales, Madrid, 1990.
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MITIDIERO, Daniel. Precedentes – Da persuasão à vinculação. 2a.ed, RT. São Paulo: 2017.
TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, vol 199, RT. São Paulo: 2011.
[1] Não obstante se saiba do relevante debate doutrinário sobre as eventuais diferenças entre o significado de hermeneutica e interpretação, no presente trabalho, optamos em utilizer tais termos como sinônimos.
[2] Para se ter uma ampla visão a respeito da imperatividade do direito abordado sobre vários aspectos, sugerimos a leitura de Norberto Bobbio. Teoria da Norma Jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2ª ed. Edipro, São Paulo: 2003. Especialmente o capítulo IV, tratando das prescrições e o direito.
[3] O Direito – Introdução e teoria geral. 13ª ed. Lisboa. 2005. p. 18.
[4] Incidente de resolução de demandas repetitivas. A luta contra a dispersão jurisprudencial excessiva. RT. São Paulo: 2016. Capítulo II destinado a análise das exigências de coerência interna do sistema e de unitariedade do direito, especialmente a página 47.
[5] Jurisdiccion y normas. Dos estudios sobre function jurisdiccional y teoría del derecho. Centro de estudios constitucionales, Madrid, 1990. p. 25
[6] Incidente de Resolução de demandas repetitivas, p. 49.
[7] Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, vol 199, RT. São Paulo: 2011, p. 139.
[8] Sobre a importância da atuação interpretativa do magistrado na constante renovação do direito, veja-se por todos: José Rogerio Cruz e Tucci. Precedente judicial como fonte de direito. Especialmente o item 4.3. São Paulo: RT. 2004; Mauro Cappelletti. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1993.
[9] Precedentes – Da persuasão à vinculação. 2a.ed, RT. São Paulo: 2017. p. 69/70.
[10] Precedentes. p. 70.
[11] Vale deixar consignado que em grande parte desses casos, sequer de precedente se trata, senão de mera orientação jurisprudencial.
[12] Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, p. 33.
[13] Partes, por petição.
[14] Ministério Público e Defensoria Pública, por petição.
[15] Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, p. 269.